Porque Funciona Tão Mal o Sistema Monetário Internacional? Uma Tese Alternativa

Desafiámos o Dr. José Carlos Costa Marques, um patriarca do  ecologismo português e editor de livros, a escolher algumas páginas de uma obra que tivesse editado e fossem relevantes para a crise financeira actual.

O Dr. José Carlos Costa Marques escolheu um trecho do livro   Transformar a Economia – Desafio para o Terceiro Milénio (Transforming Economic Life – a Millenial Challenge), de James Roberson,  publicado em tradução portuguesa em 2007 – e classifica esse extrato de «premonitório». O leitor verá, já a seguir.

  

Efeitos do actual sistema monetário e financeiro

O actual sistema monetário e financeiro é injusto, ecologicamente destrutivo e economicamente ineficaz, e transfere sistematicamente recursos dos pobres para os ricos. O imperativo segundo o qual o-dinheiro-tem-que-crescer arrasta a produção (e portanto o consumo) para níveis mais elevados do que o necessário, distorcendo o esforço económico para o objectivo de fazer dinheiro com dinheiro e em prejuízo do fornecimento de bens e serviços efectivos.

Transferência de recursos dos pobres para os ricos

É sistemática a transferência, por meio do sistema monetário e financeiro, de recursos dos pobres para os ricos, das localidades pobres para as ricas, e dos países pobres para os ricos. Não que alguém decida de tempos a tempos que esse é um objectivo político desejável. Simplesmente, o sistema obriga as pessoas e os países pobres e incentiva os ricos a consumir recursos e a criar poluição e resíduos mais rapidamente do que de outra forma fariam. Os pobres têm que o fazer para sobreviver. Os abastados, para quem a sobrevivência económica não constitui problema, gozam o luxo de o fazer quer nas suas actividades de lazer quer na prossecução de maior crescimento e êxito financeiros.

Uma das causas da transferência de riqueza dos pobres para os ricos é a forma como os juros pagos e recebidos  funcionam ao longo da economia. Dividindo a população em dez secções de igual dimensão, um estudo alemão (Kennedy, 1995) sugere que os juros fazem com que a secção mais rica da sociedade receba muito mais do que aquilo que paga, a segunda mais rica receba um pouco mais, e as outras oito recebam menos. Daí resulta uma transferência substancial de dinheiro da maioria mais pobre para a minoria rica.

A transferência de dinheiro das localidades mais pobres para as mais ricas ocorre por meio do funcionamento automático das redes bancárias e financeiras nacionais e internacionais. Como as localidades mais pobres oferecem poucas oportunidades de investimento atraente, as poupanças delas provenientes são canalizadas para investimentos nas zonas mais ricas do país ou nas zonas mais ricas do mundo que oferecem melhores retornos. Isso reflecte o serviço que se espera que o sistema bancário e financeiro forneça às poupanças e aos investidores, e é desse modo que o sistema espera obter lucros para si próprio. O mesmo princípio leva à transferência de recursos financeiros dos países mais pobres para os países mais ricos.

A dívida do Terceiro Mundo nos anos 1980 e 1990 ilustra algumas das causas e efeitos da transferência sistemática de riqueza dos países mais pobres para os países mais ricos. As taxas internacionais de juros aumentaram e o mesmo aconteceu com o custo do saber-fazer e das tecnologias importadas, ao passo que caíram os preços internacionais das matérias primas e dos produtos de base. Sem que fosse por culpa sua, os países endividados do Terceiro Mundo viram-se a braços com dívidas em escalada, resultantes de taxas de juro mais elevadas e de preços de importação a pagar, e com ganhos do comércio externo reduzidos para os pagar.1 A resposta do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial foi a de impor um desenvolvimento que colocou cada vez maior ênfase na exportação de matérias primas e dos produtos de base a preços mundiais baixos.

É necessário, como insiste a Campanha Jubileu 2000, cancelar de imediato as dívidas impossíveis de pagar dos países mais pobres, disso fazendo um compromisso do milénio para o desenvolvimento mundial equitativo e sustentável. No mais longo prazo, deveria ser reduzida a necessidade de empréstimo dos países do Terceiro Mundo, sendo-lhes atribuídos pagamentos anuais de «renda» em compensação pela utilização desproporcionadamente intensa de recursos por parte dos países industrializados, a que estiveram sujeitos.

O Dinheiro Tem que Crescer

O imperativo o-dinheiro-tem-que-crescer é ecologicamente destrutivo. O rendimento nacional tem que crescer, os lucros das empresas e do mercado de valores têm que crescer, as instituições financeiras querem que o abastecimento de dinheiro e o crédito ao consumo cresçam, e os indivíduos querem que os seus rendimentos e activos financeiros cresçam. Esta compulsão ao crescimento do dinheiro arrasta a actividade económica – a produção e logo o consumo – para níveis mais elevados do que de outra forma seria necessário. Por exemplo, o juro e a taxa de desconto encorajam a rápida expansão dos recursos. Converter os recursos num lucro financeiro e investir o lucro produz um retorno financeiro; ao passo que deixar os recursos no solo ou no mar não produz retorno até serem extraídos.

O imperativo ao crescimento do dinheiro resulta igualmente num desvio mundial maciço de esforços que, em vez de fornecerem bens e serviços úteis, são aplicados a extrair dinheiro de dinheiro. Pelo menos 95 por cento dos biliões de dólares transferidos diariamente em todo o mundo destinam-se a transacções puramente financeiras, desligadas de transacções da economia real.

Sinais de uma mudança de paradigma

As pessoas estão cada vez mais a dar-se conta da forma como funciona o sistema monetário, bancário e financeiro – que é irreal, incompreensível, irresponsável, explorador e fora de qualquer controlo. Porque haveriam elas de perder as suas casas e empregos em resultado de decisões financeiras tomadas em regiões longínquas do mundo? Porque deveria o sistema monetário e financeiro nacional e internacional implicar a transferência sistemática de riqueza dos pobres para os ricos, e dos países pobres para os países ricos? Porque é que alguém em Singapura deveria ser capaz de jogar na bolsa de Tóquio e provocar o colapso de um banco em Londres? Por que razão, ao receber uma pensão de reforma, teriam as pessoas que confiar em conselhos corrompidos pelo interesse próprio dos conselheiros? Porque é que vemos jovens, a comercializar derivados na City de Londres, que ganham bónus anuais superiores ao orçamento anual total de uma escola primária? Teremos nós que ter um sistema monetário e financeiro que funciona dessa maneira? Até mesmo o financeiro George Soros afirmou: «a intensificação irrestrita do capitalismo do laisser-faire e a extensão dos valores de mercado a todos os domínios da vida está a pôr em perigo a nossa sociedade aberta e democrática. O principal inimigo da sociedade aberta, creio, já não é a ameaça comunista mas a ameaça capitalista» («Capital Crimes», Atlantic Monthly, Janeiro de 1997).

Esta consciencialização crescente das deficiências actuais é acompanhada de uma consciencialização crescente das possibilidades futuras. Ao longo dos séculos, o dinheiro evoluiu de concreto a abstracto – de barras e moedas de metal às notas e aos cheques de papel, e agora a números armazenados electronicamente em ficheiros de computadores e electronicamente transmitidos entre estes. Chegado a esta fase – com a transformação da grande maioria dos activos e dos débitos monetários e financeiros em movimentos de contas computorizadas, e da grande maioria das transacções monetárias e financeiras em mensagens electrónicas que debitam e creditam as contas do pagador e do creditado – a nossa compreensão colectiva do dinheiro e da sua função na vida económica está a atingir um momento crítico. Cada vez se torna mais evidente que o sistema monetário e financeiro é basicamente um sistema de informação – um sistema de contabilidade (ou de pontuação) que indica os direitos que nos assistem uns relativamente aos outros no uso de bens e serviços,  quer agora quer no futuro, e nos capacita a trocar um tipo de direitos (por exemplo, dinheiro numa conta bancária) por outro tipo de direitos (por exemplo, uma apólice de seguros ou uma acção numa empresa). O papel futuro da internet neste sistema de pontuação e informação monetária está já a ser amplamente debatido.

Nas próximas décadas, as questões acerca da natureza e funções do dinheiro tornar-se-ão mais prementes. O que é o dinheiro, e para que serve? Deveria ele reflectir valores objectivos, ou deveria ser reconhecido apenas como uma ferramenta prática para facilitar as trocas entre pessoas? A quem pertence o sistema monetário, e perante quem deveriam ser responsáveis aqueles que o administram? Porque funciona ele hoje tão mal?

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